Antes de atravessar
Olhando para os dois lados para não ser atropelado por um empreendedor
Tinha um conselho de adulto que eu achava bem desnecessário: “olhe para os dois lados antes de atravessar”. Imaginava que a frase tinha sido criada em uma cidade menor, nunca na minha, onde muitos sinais de trânsito. Eu ia só de “atravesse apenas no sinal fechado” e estava tudo bem. Só que ultimamente o sinal fechado não adianta mais. Estou sim olhando para os dois lados ao cruzar a rua. Porque pode estar vindo uma moto pela contramão. Na verdade, estou olhando para os dois lados antes de sair até do meu prédio. Porque pode estar passando uma bicicleta pela calçada. Pode inclusive estar vindo uma moto na contramão pela calçada. Pois é. O perigo sobre duas rodas deixou de ser apenas o famigerado “dois caras numa moto” pra ser “um entregador em alta velocidade desrespeitando todas as regras do trânsito”.
Eu fazia minha parte tentando conscientizar os infratores com uma grande encenação na faixa de pedestre. Parava no meio do caminho, mesmo que não fosse ser atingido, e levantava os braços, como se fosse um jogador pedindo falta para o juiz. Não adiantou, claro. Então comecei a gritar “uôoooooo!!!”. Não estou certo sobre a acentuação, mas garanto a exclamação tripla. Não foi o suficiente e passei a gritar alguns palavrões, sabendo que o motoqueiro já estaria longe quando ouvisse meu desabafo de baixo calão.
Até que um dia, atravessando um sinal fechado em um bairro da Zona Sul, desci um pouco na minha progressão e gritei para um entregador motorizado apenas um “olha o sinal, irmão!” (uso o palavrão só no meu bairro, de Zona Norte). De novo não houve interação com o cara da moto. Mas houve de outro pedestre, um senhor que passou por mim e falou apenas “Já era, desiste. Agora é assim”. Caramba. É isso mesmo? A vontade foi de tentar combater também aquele cidadão, com um irônico “Ah é? Saiu no Diário Oficial?”. No entanto, uma instantânea inveja de sua paz de espírito me impediu até mesmo de mandar um “Não, senhor! Precisamos tomar alguma atitude, fazer valer nossos direitos!”. Eu queria ser como ele, não me revoltar quando um empreendedor veloz ignorasse o sinal fechado. Então seria o caso de apenas considerar tudo isso “o novo normal?”. Será que “vamos sair melhores disso tudo” se agirmos assim?
Não seria fácil para mim, todo certinho, chamado de “caxias” desde criança. Precisava de um jeito de parar de me irritar com o novo cotidiano. Encontrei dois. O primeiro foi encarar tudo pela ótica socialista, entendendo que aquelas motos e bicicletas furando sinal, tirando fino de pedestres ou atropelando velhinhas nas calçadas eram pobres coitados explorados pelo sistema capitalista. Eles não ignoravam todas as regras do trânsito e de cidadania por serem maus, canalhas, calhordas e biltres (juro que nunca os xinguei assim). Os entregadores fazem tudo isso porque precisam levar as encomendas o mais rápido possível, seja para cumprir um prazo estipulado pelo aplicativo, seja apenas para estar livre para pegar a próxima missão. E a próxima e a próxima. Quanto mais rápido ele fizer tudo, mais dinheiro ganhará. E não estamos falando de cobiça, mas de necessidade.
O entregador não subiu a calçada pela contramão para juntar mais dinheiro para comprar uma bela cobertura, mas para tentar ganhar algo equivalente a um salário mínimo, com uma débil cobertura. É isso! “Trabalhadores do mundo, uni-vos”. Somos iguais. Se uma das empresas que me chamam para escrever colocasse em meu contrato uma cláusula dizendo “o autor ganhará mais um job automaticamente se ao fim desta encomenda subir em uma moto e furar um sinal”, eu alugaria uma Honda na hora.
Mas quer saber? A visão socialista não foi suficiente para resolver o MEU problema. Então estou adotando a tática individualista. Talvez seja apenas pensando em meus próprios interesses que eu passe a tolerar os entregadores empoderados. Agora, quando um motoqueiro passa na minha frente na faixa de pedestre ou um ciclista quase me atropela correndo pela calçada, lembro que o conteúdo daquela caixa poderia ser meu. Cada audacioso entregador desses poderia estar levando um hambúrguer pra mim. Quem sabe até um combo japonês para alguém que amo. Ou um sanduíche para um colega de trabalho (estou tentando pensar além de mim, vejam só). Nesses casos, talvez eu dê um OK para o profissional não ser profissional, para que ele venha na contramão da cidadania. Acho que está dando certo. Já não xingo mais no meio da rua. Melhor assim. Porque sinto que qualquer tentativa de cobrar dos aplicativos uma atitude, daria em pizza. E quem é que lucra com a entrega dessa pizza?
Agora você pode até torcer pelos caras. Quando eles tirarem aquele fino de você na calçada, já pode gritar: "Tamo junto, FdP maldito do c******!!!".
Essa semana mesmo eu estava me queixando com minha esposa sobre motos e bikes, sendo que sou fã de ambas. O problema é que elas é que não gostam muito de mim