Nem tudo se encaixa
Era um trabalho esquisito, mas eu devia ser a pessoa exata para o serviço
A estranha janela com diálogo apareceu no meio da tela, assim que bati meu recorde pessoal no Tetris. Sim, eu jogo Tetris, um jogo bem velho. Aquele das pecinhas caindo enquanto precisamos encaixá-las e eliminar linhas antes que cheguem até o topo. Em minha defesa, também tenho dois consoles de Playstation, para provar que não parei no tempo. Só que Tetris eu posso acessar a qualquer momento no meu computador, sendo a coisa mais fácil a fazer quando preciso enrolar antes de começar um trabalho. Mas por que você está implicando com meu joguinho quando estou contando de algo muito mais bizarro acontecendo? Simplesmente um retângulo surgiu no meu monitor, começando com um parabéns e me chamando para um diálogo.
- Congratulações por sua pontuação. Gostaria de saber como seu talento pode ser aproveitado?
Eu já dei papo para golpista antes, zombando da tentativa tosca de se fazer passar por minha mãe no Whatsapp e me convencer a transferir um dinheiro. Naquela vez, o sujeito me ligou fazendo ameaças e ficamos uns 30 segundos trocando ofensas. Por que não conversar com esse cara do computador? Afinal, ele parecia bem mais talentoso, capaz de hacker meu PC. E aparentemente, não estava tentando me enganar. Não logo de cara. Respondi com um “sim” seco.
- Compareça ao seguinte endereço, amanhã, às 10h.
A linha seguinte me indicou um galpão na zona portuária da cidade. Claro que não era para eu ir. No entanto, lembrei-me de um filme dos anos 80, no qual um jovem faz a pontuação máxima em uma máquina de pinball e um disco voador aparece para buscá-lo. O aparelho era, vejam só, um simulador de combate de aeronaves para uma guerra interplanetária. Os melhores eram chamados para ajudar os ETs do bem a vencer. Eu sinceramente não esperava que um alienígena estivesse me esperando para fazer justiça intergalática. Mas não podia deixar na mão pessoas que poderiam estar contando muito com meus talentos no Tetris.
No dia seguinte, cheguei uma hora mais cedo e passei umas quatro vezes pela porta do galpão, para sondar o que acontecia por ali. Lá pela quinta vez, um senhor oriental surgiu na entrada, me pegando de surpresa.
- Nós temos câmeras de segurança. Percebemos sua chegada na primeira vez que você passou por aqui. Não precisa ficar com medo.
- Medo? De jeito nenhum. É que acabei me adiantando e estava fazendo hora. Volto no horário combinado.
- Nós precisamos do seu talento. E pagaremos por ele. Por favor, entre.
- Antes, o senhor pode me tirar umas dúvidas? Você é daqui mesmo?
- Você esperava um ET, como em O Último Guerreiro das Estrelas?
- Quis saber se o senhor é do Brasil.
- Sou da República Popular da China.
- Ah, sim. Mas... conhece o filme, né?
- Nos inspiramos nele para o recrutamento. Você é fã de Tetris, certo?
- Eu jogo bem, acho.
- Viu o filme sobre o jogo, com Taron Egerton?
- Por acaso, vi. Mostra como um programador holandês cidadão americano foi até a antiga União Soviética para adquirir os direitos do Tetris. Gostei muito. É, talvez seja um fã.
- Me diga uma coisa: você acha que a vida é como o Tetris, porque seus acertos desaparecem assim que acontecem, enquanto os erros vão se acumulando até que tudo acabe?
- Eu já li isso em algum lugar na internet. Mas... discordo um pouco. A vida é como Tetris porque a gente consegue encaixar as peças várias vezes. No fim, a pontuação está lá para dizer que você foi bem. E você se divertiu no processo.
O senhor sorriu, escancarou a porta e fez um gesto para que eu entrasse. Dessa vez não tive medo. Lá dentro havia vários containers empilhados, de formatos diversos, bem diferente daqueles paralelepípedos gigantes que vemos nos navios cargueiros. Um guindaste sem lugar para um operador estava parado ali num canto. Perguntei o que era aquilo tudo.
- Meu país está tentando formas de otimizar a ocupação de cargueiros, com uma nova proposta de containers. Precisamos treinar uma IA com os movimentos de alguém que seja um exímio jogador de Tetris.
- Quanto vocês estão pagando?
- 100 reais por hora.
- Aceito.
- Desculpe, mas sua pontuação o deixa apenas entre mil melhores brasileiros no jogo. Para movimentar o guindaste, chamamos apenas os cem melhores.
- Então o que estou fazendo aqui? – perguntei entre irritado e envergonhado. Mais envergonhado, na verdade. Eu aceitei o primeiro valor que surgiu e nem para isso eu servia.
- Temos outro projeto, de uma geladeira com uma garra interna para organizar potes automaticamente em seu interior. É uma missão menor, mas ainda honorável. Pagamos 50 reais a hora.
Aceitei porque gostei da palavra “honorável”. Sempre quis que um senhor oriental usasse esse termo diante de mim, como via nos filmes com mestres de kung fu. Eu seria honorável a seus sábios olhos. Tá, não vou mentir. Queria mesmo eram os 50 contos por hora. Não está fácil conseguir trabalho para escrever algo, nos últimos meses. Então fui eu para a frente da enorme geladeira, que devia ser apenas um protótipo. Eu teria que encaixar uns potes quadrados, outros redondos, outros retangulares, em diversas prateleiras. Uma câmera com IA estudaria meus movimentos. Quando já ia começar a tarefa, começou a tocar uma música, a todo volume, em uma grande caixa de som no alto do galpão. Era o tema de Tetris. Levei as mãos aos ouvidos e fiz uma careta que foi bem eficaz em trazer meu empregador até mim.
- O que foi?
- Essa música!
- Korobeiniki, composta por nossos camaradas russos. Estudos mostram que os funcionários encaixam melhor com essa música.
- Eu não consigo.
- Como você joga?
- Eu.. eu tiro o som.
O olhar do meu futuro ex-chefe foi de desprezo. Talvez até nojo, mas posso estar exagerando.
- Lamento. Foi um grande engano de nossa parte. Um colossal engano.
Entendendo que eu não era mais honorável, tentei uma piada, que é meu jeito de reagir a situações desconfortáveis.
- Um tétrico engano, né? - disse, com um sorrisinho amarelo desbotado.
Dessa vez o rosto foi de nojo, sim. Ele apontou a saída e me entregou 50 reais em dinheiro. Pelo menos, as notas encaixaram direitinho em minha carteira.
Ele não ter curtido o seu trocadilho me deixou até triste...